Entenda alguns conceitos psicanalíticos e como funciona o seu inconsciente.
"Paisagem Angélica", de Salvador Dali, de 1977, exposta atualmente nos Museus Vaticanos, Estado do Vaticano. A obra surrealista tem como intuito contrapor a leveza dos anjos ao monstro disforme e flácido que representa a angústia humana (abaixo, no canto esquerdo da tela).
A alma humana parece esconder certos segredos a sete chaves, muitos deles aparentemente indecifráveis, mas que, ao mesmo tempo, se fazem presentes de alguma maneira, mesmo que em forma de um profundo sofrimento. Neste texto pretendo abordar alguns dos principais e mais básicos conceitos da psicanálise, no intuito de provocar no leitor a própria reflexão sobre sua existência e devolver a ele a demanda sobre sua vida.
COMO FUNCIONA O MECANISMO DE REPRESSÃO DE DESEJOS DO INCONSCIENTE
Freud sentencia: “o eu não é senhor em sua própria casa”. Ele referia-se à presença determinante do inconsciente, o qual opera, também, através desse mecanismo que chamaremos aqui de mecanismo de repressão.
De um modo sucinto, pode-se dizer que a repressão é um mecanismo da mente humana através do qual impulsos indesejáveis e inaceitáveis para a consciência são suprimidos e, assim, impedidos de acessarem o estado consciente. Tal conteúdo “indesejável” fica profundamente inacessível (inconsciente) por tratar-se, antes de tudo, de um mecanismo de proteção.
Segundo Freud, mesmo que não tenham acesso livre à consciência, digamos assim, tais conteúdos demasiadamente dolorosos ou ameaçadores, apesar de estarem recalcados à nível inconsciente, acabam por influenciar comportamentos, sentimentos, e o próprio modo de existir dos indivíduos, de uma forma ampla.
Uma maneira de entendermos o que Freud quis dizer é comparando a mente humana à um iceberg (você provavelmente já deve ter visto alguma figura trazendo essa analogia), onde apenas uma pequena parte está visível na superfície (o consciente), enquanto a maior parte está submersa (o inconsciente).
Talvez, se usarmos uma outra alegoria fique ainda melhor compreender como esse mecanismo que recalca certos desejos funciona. A alegoria seria a seguinte: imagine que exista um vigia ou guardião no portão de seu consciente, permitindo o que pode, e o que não pode passar/entrar. Assim, alguns conteúdos têm passe livre, mas os desejos e pulsões considerados “errados” para o vigia, são mandados para uma espécie de porão ou calabouço, sendo trancados por lá, sentenciados a permanecerem presos para sempre, sem nunca emergir para a superfície consciente. Desta forma, o mecanismo de repressão mantém os conteúdos indesejados afastados da mente consciente, no intuito de protegê-la do desconforto emocional que eles causariam.
Entretanto, os desejos recalcados não se conformam com sua condição de prisioneiros e tentam, a todo o custo, forçar a entrada no consciente. Sendo assim, a maneira que tais desejos encontram de driblar o guardião e de se manifestarem é travestindo-se de “outra coisa”. É assim que o vigia é enganado. Os conteúdos reprimidos então não desaparecem, mas, pelo contrário, exercem uma forte influência, mesmo que não de forma direta.
Através do que chamamos em psicanálise de atenção flutuante, é possível se ter acesso à manifestações do inconsciente, as quais são pistas valiosas e a matéria prima mais preciosa para a direção da análise. Tais manifestações do inconsciente não se limitam ao processo de fala no divã (associação livre), mas podem, também, emergir em sonhos, lapsos de memória, atos falhos e sintomas neuróticos, revelando-se de maneiras simbólicas ou “disfarçadas".
Desta forma, as intervenções psicanalíticas são essenciais para que o indivíduo elabore suas questões mais desafiadoras e causadoras de sofrimento. A elaboração oriunda deste processo faz com que o analisando em questão compreenda a si mesmo e a seus conflitos internos.
O QUE É O SINTOMA
A maioria das pessoas é levada ao divã por um sintoma. Os sintomas são, em geral, aquilo pelo qual nos queixamos, ou seja, o que atrapalha nossa vida de uma forma considerável e que nos leva a buscar a ajuda de um profissional.
O sintoma pode ser chamado também de representante pulsional do desejo reprimido, e muitas vezes ele se manifesta fisicamente, o que seria mais propriamente um sintoma histérico, segundo a psicanálise.
Isso ocorre porque é possível recalcar uma ideia, mas é impossível recalcar o afeto que está ligado à essa ideia. É por isso que os sintomas, muitas vezes, parecem surgir “do nada”, mas, em realidade, eles são uma pulsão outrora recalcada (para o “calabouço” do inconsciente). Essa pulsão então retorna como sintoma porque esta é uma forma que o desejo inconsciente encontra de se realizar, é como se ele “driblasse” o sistema, disfarçando-se.
A pulsão fica então pressionando para ser satisfeita, mas, como o mecanismo não permite, ela “aparece” de outra forma. Por isso se diz que a pessoa goza de seu sintoma, pois ela tem um gozo secundário com ele, mesmo que isso também acarrete sofrimento. Esta é uma forma admitida pela consciência de satisfazer o desejo reprimido, sendo o sintoma uma forma de realizar tal desejo e, ao mesmo tempo, punir-se por ele (já que ele é tão terrível a ponto de ser barrado pelo vigia do consciente). Resumindo: o gozo do sintoma é a satisfação inconsciente da pulsão que não foi admitida.
Por isso é difícil livrar-se de um sintoma, pois trata-se, ainda, de uma satisfação, também chamada de “gozo podre”, na medida em que a pulsão se satisfaz através do sintoma.
E qual é, então, o trabalho do analista diante deste sintoma? Bom, o papel do psicanalista passa por algo como “escavar” ou “esburacar” o discurso da queixa do analisante, na medida em que tal discurso está inflado de simbolização. Assim, o sintoma esvaziado de sentido não é mais um significante (noções sobre outros conceitos essenciais em psicanálise tais como "significado", "significante", "metáfora", "metonímia", "objeto a", "transferência", "resistência", dentre outros, ficarão para um próximo post).
Desta forma, o sintoma não pode, simplesmente, ser retirado do analisando, mas esta escavação permite que o analista encontre certas pontas de realidade fantasmática do sujeito, o que seria uma espécie de chave que abre as portas do grande alçapão do inconsciente.
Apenas o atravessamento de tal realidade fantasmática (ou pode-se dizer, simplesmente, atravessamento do fantasma) possibilita a descoberta do verdadeiro desejo de quem deita no divã.
O ATRAVESSAMENTO DA REALIDADE FANTASMÁTICA
(ou atravessamento do fantasma)
Não há nada de sobrenatural ou metafísico neste conceito, o que significa que não estamos tratando aqui da definição usual da palavra “fantasma”, em português. Esta é uma terminologia propriamente abordada por Lacan no Seminário 14, intitulado “A lógica do fantasma”, e iremos aqui dar pequenas pinceladas sobre o tema.
Mais uma vez, de um modo muito sucinto (pois é impossível esgotar temas tão complexos em um texto como esse) Freud chamou de fantasia a forma como o ser humano lida com suas faltas e como se relaciona com os demais (representantes transferenciais do Grande Outro, conceito psicanalítico que ficará, também, para uma próxima postagem aqui no blog).
Lacan, por sua vez, utilizou a terminologia “realidade fantasmática” ou simplesmente “fantasma”, em alguns de seus seminários, para dar alguns retoques no conceito freudiano de fantasia.
A realidade fantasmática, para Lacan, seria uma estrutura responsável por sustentar e constituir o sujeito, através de padrões inconscientes que moldam sua percepção e sua experiência. Assim, esta última constituiria-se a partir de eventos, percepções ou narrativas imaginárias originárias da infância, e que se manifestam de maneira simbólica ao longo da vida. Pode-se dizer que a realidade fantasmática ou o fantasma primordial de alguém é, também, a repetição da relação deste com o Grande Outro (alienação ao desejo do outro) bem como da forma como este alguém se vê e se posiciona diante da vida.
O “SABER-FAZER-COM”
O “saber-fazer-com” se opõe ao sintoma na medida em que transforma o “gozo podre”, explicado acima, no próprio “gozo da vida”, transformação essa operada pelo processo de análise e pelo atravessamento da realidade fantasmática. Desta forma, diz-se que o sujeito sabe o que fazer com seu sintoma, sabe como desfrutar da vida mesmo diante de sua condição limitante, na medida que não mais a nega, mas sobre ela tem consciência.
O sujeito que avança no processo de análise é também chamado de sujeito advertido, o que significa estar advertido sobre as próprias barreiras impostas por seus mecanismos internos e por seu inconsciente, advertido sobre seus limites, suas faltas e dificuldades.
É a partir da tomada de consciência e do autoconhecimento proporcionados pela análise que o sujeito advertido tem a possibilidade de saber gozar da vida e não mais do seu sintoma, ou, como diria Freud, de sair de uma situação que chamou de “miséria neurótica”, representada pelo sofrimento excessivo.
APRENDER A DESFRUTAR DA VIDA!
As marcas, feridas e traumas provenientes da infância muitas vezes se confundem com a própria identidade do sujeito, de modo que ele não consiga vislumbrar nada para além de sua realidade fantasmática e da forma que se organiza psiquicamente.
Às vezes, é difícil abrir mão do próprio sintoma porque, além do fato de que o sintoma traz um certo conforto ou mesmo um gozo podre, como expliquei acima, o sintoma se confunde com a própria singularidade. Em regra o sujeito teme, mesmo que inconscientemente, abrir mão do seu sintoma porque, ao fazê-lo, deparar-se-ia com um grande vazio, um grande buraco existencial. Assim sendo, o trabalho do analista é o de esvaziar, ou desinflar o sintoma de sentido, para que surja então espaço para o “saber-fazer-com”, ou seja, aprender a viver após esse atravessamento do fantasma e, finalmente, aprender a desfrutar da vida.
Na verdade, segundo Lacan, é como se a realidade fantasmática envelopasse o que ele chamou de “Real” (conceito atrelado às definições de “Imaginário” e “Simbólico”).
O Real para Lacan seria algo ao qual não se tem acesso, pois ele estaria, justamente, encapsulado pela realidade fantasmática que nós mesmos construímos para nos constituirmos e existirmos no mundo. O Real seria algo que foge à qualquer definição ou representação, e por isso nós o envelopamos em uma narrativa pessoal mais suportável. O Real está encapsulado pela realidade (fantasmática), justamente, porque não o suportaríamos. Mas, na medida em que a análise avança, a realidade fantasmática é atravessada, e as dobras deste “envelope” são desfeitas.
Assim a psicanálise, através de seu efeito de espelhamento, é capaz de mostrar ao sujeito sua fantasia mais sutilmente escondida, a mais difícil de ser encarada. Ao alocar-se diante do analisando, ela é capaz de refletir, a olhos nús, o próprio fantasma primordial. Quando esse fantasma é, enfim, atravessado, o sintoma é esvaziado e, consequentemente, as transferências caem por terra, fazendo com que a pessoa tome as rédeas de sua própria vida, deparando-se com inúmeras possibilidades de criar e de estar no mundo. Seu reflexo é, enfim, conhecido.
Luiza Andriollo